CONTO: Paula de Sousa Lima

NAS MARGENS DA ILHA

 

O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar.

O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar.

O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar.

 

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

 

Era um homem que chegava e partia, não se demorava, mas voltava sempre, tal partia sempre. Era um homem que vivia nas margens do amor, assim como ela vivia nas margens da ilha, sem o saberem nem um nem outro. Ela só sabia da claridade que o contornava na chegada e da ávida quentura que os lábios dele deixavam nos dela e da intensa brandura das mãos dele trilhando o corpo dela. E ele só sabia da inclemência do desejo ante o cabelo, a boca, os seios, as pernas, a vulva dela, mas isto entre o chegar e o partir, pois era-lhe inevitável chegar e não demorar e partir, e votar a fazê-lo quantas vezes o corpo e a alma lho requeressem.

As margens do amor podem equiparar-se às margens da ilha: contornam-se de segredos e estendem-se para longe, para muito longe, para horizontes tão imensamente longínquos que ninguém os pode abarcar na totalidade, que ninguém pode tê-los como seus. Portanto, as margens daquele amor não se confinavam senão a margens semelhante às da ilha: indesvendáveis, inaprisionáveis, sem suserano que não os sentidos. E as margens da ilha não eram, tal nunca o são, aquele momento de terra que o mar levemente acaricia ou rudemente quer desgraçar; as margens da ilha eram, como sempre são, o que está sempre além desse momento de terra, são toda a imensidade secreta e sacrílega do mar, pois a ilha pertence ao mar e sempre se lhe sujeita, ainda que o negue, ainda que lhe queira dizer não.

Haviam de ser os dois servos dos sentidos, ou do mar, aqui coisas perfeitamente iguais, embora vivesse ela nas margens da ilha e ele nas margens do amor, portanto quisesse ela, sem de tal ter consciência, senhorear o mar, e vivesse ele nas margens do amor, logo fosse como o próprio mar, que ninguém comanda, que ninguém pode tomar como seu, que ninguém tem poder para trazer fechado na mão, pois escorre entre os dedos. Foram servos dos sentidos, longamente comandados pelo desejo do corpo um do outro, enquanto não conheceram exatamente um e outro as margens em que viviam, enquanto não percebeu ele que ela vivia nas margens da ilha e não teve consciência ela de que ele vivia nas margens do amor, enquanto não souberam nem um nem outro que ele era mar.

Algures num leito transgressoramente lascivo e suspenso dos sonhos que ela sonhava – sempre nas margens da ilha se nos ajeitam sonhos tão inconsistentes como a areia –, submetiam-se ela e ele ao desejo e, ausente qualquer interdição, misturavam saliva e suor e sémen e alma. Teriam sido sempre felizes, como acontece na literatura bem-intencionada, ou, pelo menos, enquanto a nudez dos seus corpos fosse bela e jovem, como aceita uma literatura mais realista, se ela não quisesse renegar as suas origens, se ela não se opusesse a viver nas margens da ilha. E se, ao abjurar tais origens, não fizesse com que ele se reconhecesse como habitante das margens do amor. Não se pode, no entanto, inculpá-la, pois quis ela, tão-só, aquilo que quer uma mulher comum, uma mulher que ama e que se sente amada – ai, que sonhos imprudentes somos capazes de sonhar, sem cuidar que nem todos os sonhos se podem sonhar, sem ter em conta que o sonho é, tantas vezes, o maior obstáculo à vida.

Disse-lhe ela:

Fica, não vás, sê meu constantemente, que eu sou tão tua.

Respondeu ele, não com as palavras que se registam a seguir, mas só com um sorriso doído:

O mar não permanece, não pode ser detido, vai e volta; ninguém o senhoreia, ninguém pode ser dele horizonte.

A partir deste diálogo, que sequer diálogo foi, pois ele limitou-se a sorrir doidamente, a tomar as mãos dela, beijando-as e deixando-as, depois, lassas e arrefecidas, não voltou. Esperou-o ela no leito onde os dois corpos se haviam feito um, cada dia mais despojado de calor, mais seco, mais estéril, como, na ausência dos amantes, vem a ser um leito onde o desejo insensatamente se liquidificou. Esperou-o ela a cada dia mais ressequida por dentro, com as mãos cada vez mais frias e os olhos a desabitarem-se de luz, até que determinou não esperar mais, acatar o destino, assim o pensou, ser triste e só e deixar de olhar o mar. Ai, fraco entendimento humano, pois o destino de um leito de amantes não é ser estéril nem seco nem frio, nem um homem que é mar deixa de voltar a acariciar as margens da ilha.

Assim, num dia muito distante daquele em que havia partido, levando consigo a claridade que ela sempre lhe reconhecera, ele voltou. Ela desatou o cabelo cinzento, deixou-o escorrer-lhe sobre os ombros, não teve pudor do corpo já tomado pela inclemência do tempo, sorriu, tomou a mão dele, conduziu-o ao leito. Os sentidos renasceram, inteiros, como sempre a cada regresso dele. Ele havia de se quedar sem a demora que ela já não exigia, havia de partir, havia de voltar, e ela esperaria, sabendo agora que ele vivia, como sempre vivera, nas margens do amor, tal ela vivia, assim sempre vivera, nas margens da ilha; ela esperaria tomada de enlevo pelo mar, a quem nada se exige, cuja presença se aceita tal uma dádiva.

Se foi ela, então, feliz? Se o foi ele? Pois há a dizer que não existe forma de o sabermos, dado estas coisas de ilhas e de amor e das respetivas margens serem tão imensamente misteriosas como o início dos tempos, quando um sopro animou a superfície das águas e delas se elevou a vida.                                                                                         

Poesia de Dora Gago

Ilhas sagradas

 

Nacos de terra,

de exílios,

rochas, quimeras,

pousadas no azul,

vestidas de verde,

de solidão, sonho,

e de madrugadas.

Sinfonias de luz,

bruma e sombras

inscritas nas margens

da distância,

tocadas

pelos dedos da saudade,

no piano do horizonte.

 

 

Excertos de POUCA TERRA de Leonor Sampaio da Silva

 

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Sabes, Rick, Paris não me diz nada. Deixaste de cantar, obrigaste o piano ao silêncio e expulsaste-me de todas as pautas, porque um dia, em Paris, fomos felizes. Mas, a mim, Rick, a mim Paris não me diz nada. Paris fica bem no cinema, não em mim. Paris não me serve, não me dá chão nem nuvens. Paris rouba-me o lar a norte e Neptuno a sul. Paris é para os amantes que escrevem cartas de amor com mangas de folhos e cabeleiras postiças. Dá-me uma cidade pequena, Rick, onde caiba uma biblioteca de vinte livros, não mais, e uma vela. Dou-te um quarto onde te possa visitar e uma mesa onde possas encontrar--me à beira de um chá. Encontra para nós uma cidade onde eu te possa ver à distância de um beijo; uma cidade pequena, Rick, com uma lareira e um vaso com terra, a esquadria de um poema e um álbum de fotografias. Não teremos sempre Paris, Rick. Isto é conversa de filme americano. Paris é para os americanos. Dá-me uma cidade pequena, Rick. Antes quero uma cidade que eu possa erguer que outra que me derrube.

 

Querido Vulcão,

É hora do adeus. Chamei-te Rick, à falta de um nome que fosse só teu. Pareceu-me justo homenagear o mestre das despedidas. Deixo-te o meu retrato. Não precisas de me responder. Sei que, depois do teu último esforço, mergulhaste num sono prolongado. Não te culpes. Eu não te culpo. A tua obra é perfeita. Basta que, um dia, caso acordes, olhes para esta imagem, leias estas linhas e percebas que não há mais nada que possas fazer por mim. Volta-te e adormece de novo. A terra tremerá um pouco, mas já estou habituada. Fizeste um excelente trabalho.

 

Agora, repousa e dorme, dorme, até te esqueceres de mim. Deixa que te recorde sozinha. Se for preciso, morre por mim. Às vezes, não é suficiente amar; é necessário morrer para que viva quem amamos. Eu quero viver. Basta que adormeças para sempre. Deixei-te partir. Deixa-me ficar. Permanecerás na memória daqueles que me conhecerem. Se me matares, viverás apenas uns dias; se morreres, viverás eternamente, em mim.

Sempre tua,

Ilha