Apresentação formal de Ogygia: Revista Literária 

Lançamento da revista OGYGIA: Apresentação

 

 Ana Cristina Correia Gil, Universidade dos Açores,  

Ponta Delgada, 18 de setembro de 2025

 

Quero começar por agradecer à Paula Lima e à Avelina da Silveira o convite para fazer esta apresentação e participar neste evento marcante.

É com muito gosto que aqui estou, a participar nesta celebração da palavra, da literatura, da arte e da liberdade criativa.

O lançamento de uma revista é um acontecimento editorial, sobretudo em tempos em que a leitura e a escrita têm sido tão desconsideradas, quer em termos informais, quer no âmbito institucional. É, portanto, um ato de resistência, num tempo em que fecham jornais e revistas (o Jornal de Letras há poucas semanas), em que grupos editoriais vão à falência (grupo Trust In News, precisamente dono do JL), em que se extinguem (ou pretende alterar, sem qualquer debate ou consulta pública) projetos estruturantes e de enorme sucesso como o Plano Nacional de Leitura e a Rede de Bibliotecas Escolares, situação à qual não podemos ficar indiferentes.

Nesta conjuntura de desvalorização da cultura, da leitura e da escrita, da criatividade e do espírito crítico, e até de censura (em alguns casos), este lançamento tem muito de especial.

Pôr de pé uma publicação – um jornal ou uma revista – implica um esforço hercúleo, uma vontade indómita e grande generosidade da parte de quem organiza e de quem participa. Sobretudo num projeto como esta revista – Ogygia de seu nome – um projeto independente, cuja qualidade é diretamente proporcional ao entusiasmo das suas mentoras: Avelina da Silveira e Paula de Sousa Lima.

No editorial, assinado por Avelina da Silveira, esta desvenda o nome da revista, já de si poético – Ogygia – que convoca desde logo um diálogo com a tradição literária da Antiguidade Clássica: “a ilha arquétipa e omnipresente que captura a imaginação poética; Ogygia, ilha mitológica e fecunda de Calipso” (p. 7).

Fica assim dado o mote na abertura. Ogygia é a ilha mítica onde Ulisses, na epopeia homérica Odisseia, aporta, nela permanecendo por sete anos junto da ninfa Calipso. A ilha Ogygia em si convoca várias leituras, várias interpretações, a que a grafia com Y, de pendor mais arcaizante, não deixa de ser alheia.

Ogygia lembra-nos a viagem, a deambulação de Ulisses, o seu confinamento à ilha, mas também a sua partida, o seu regresso a Ítaca e, acima de tudo, faz-nos recordar também Penélope, outra mulher marcante desta epopeia homérica, cuja esperança, lealdade e paciência infinita lhe permitiu ficar tecendo indefinidamente, sempre na esperança que Ulisses regressasse, como aconteceu. Esta relação intrínseca com a Odisseia é, portanto, uma evocação da mulher – das mulheres – que, parecendo personagens secundárias – ou sendo relegadas para esse segundo plano –, são afinal parte fundamental da engrenagem do mundo.

E faço aqui um parêntesis para vos recomendar também a leitura do conto de Eça de Queirós, “A perfeição”, do volume Contos, que narra de modo extraordinário o cansaço de Ulisses com a vida excessivamente perfeita na ilha de Ogygia, e mostra como é bom a imperfeição fazer parte da nossa vida, pois ela é desafiante, incentiva-nos a ultrapassarmos os obstáculos.

E é de desafios e obstáculos que aqui também vamos falar.

Ogygia é assim uma revista literária que concretiza um sonho de duas mulheres – empreendedoras, lutadoras, criativas, livres e talentosas: Paula de Sousa Lima e Avelina da Silveira. Elas estão desde já de parabéns por terem conseguido, com muito sucesso, ultrapassar as dificuldades sempre inerentes à criação de uma nova publicação.

Olhemos então a revista…

Num primeiro folhear – ainda que em formato digital (e confesso desde já a pena que tenho de esta não ter uma versão impressa) – percebemos estar perante uma publicação que apela aos sentidos – pelas cores e imagens que captam o nosso olhar – e que convoca também quer o nosso sentido estético, quer o nosso espírito racional, crítico, reflexivo.

É desde logo de destacar o cuidado gráfico que a revista revela, a começar pela capa – simultaneamente singela, elegante e tão apelativa, com o seu quase-círculo imperfeito e aberto, evocando ele próprio também uma ilha. O cuidado gráfico está também presente no modo como se conjugam textos e imagens, que vão dialogando entre si à medida que percorremos estas páginas.

Logo no “índice-arquipélago”, como gosto de lhe chamar, marcado pela diversidade, cada texto “navega” na página, sem a costumeira listagem numericamente ordenada, nela se convocando vários géneros – literários (poesia, conto, romance), não literários (ensaio, entrevista e crítica literária) e um na fronteira entre ambos (a crónica) – e várias artes em diálogo  – a literatura, a pintura e a fotografia, cuja relação próxima foi desde sempre fecunda. Às obras de Nina Medeiros (a artista convidada deste primeiro número), de um cromatismo intenso e envolvente, juntam-se, a nível visual, várias fotografias, da autoria de outras tantas artistas, que vão estabelecendo um diálogo com os textos com os quais partilham a mancha gráfica da página.

É assim que este “índice-arquipélago” faz jus ao tema deste primeiro número de Ogygia: a ilha. Cada peça, cada texto, cada imagem é uma ilha, marcada pela originalidade própria, mas, ao mesmo tempo, cada elemento dialoga com os restantes, formando um arquipélago de sentidos que ressoam no leitor à medida que este vai avançando nas páginas e criando uma constelação de significados: a ilha paradisíaca e simultaneamente aprisionadora, o mar aprazível mas também lugar de mortes trágicas, a abertura e o fechamento, o isolamento, o centro e as margens, os condicionalismos geográficos (o relevo acidentado, o vulcão), a partida e o regresso, as especificidades linguísticas açorianas que são, acima de tudo, identitárias – todos estes temas encontramos em Ogygia.

A poesia ocupa uma parte considerável da revista. Dora Gago, Maria do Rosário Pedreira, Avelina da Silveira e Ângela de Almeida formam um políptico que nos faz viajar da ilha mítica (poema “Ilhas sagradas”, de Dora Gago) à tragédia dos que deambulam pelo “Mediterrâneo” num desespero que procura rumo (refiro o poema homónimo de Ângela de Almeida), não sem passarmos pelo âmago da experiência do que é a essência de se ser insular (no poema “Insularmente”, de Avelina da Silveira). Curiosamente, “Ventre”, poema de Maria do Rosário Pedreira, parece, a uma primeira aproximação, estar mais afastado do tema proposto, a ilha. É, porém, do ventre fecundo que se trata, do ventre feminino, materno, protetor – ecoando a possibilidade de relação com a ilha-mãe, protetora e geradora de vida, também ela um ventre fértil.

Na narrativa, também com presença prolífera, Paula Lima leva-nos entre a ilha e o amor, numa simbiose poética que, mais do que explicar o amor, as partidas e as chegadas, revela os mistérios dele, a insondável atração de dois seres que, ainda que vivendo “nas margens”, na fronteira entre o partir e o ficar, não deixam de se amar.

Leonor Sampaio da Silva marca presença de forma direta, com um excerto de Pouca terra e respetiva tradução por Avelina da Silveira, e através da crítica de Paula Lima a Passagem noturna, a estreia de Leonor Sampaio no romance, recentemente publicado, finalista do prémio Leya. Em ambos os textos é mais uma vez a ilha e a insularidade que ganham densidade, na dicotomia dialógica e dialética entre ilha e vulcão (em Pouca terra) e na dupla insularidade em Passagem noturna (um hotel isolado numa ilha), invocando o isolamento, a solidão e a incomunicabilidade, como refere Paula Lima.

Ainda sobre a palavra oral e escrita – que é a da poesia, mas também a que usamos no nosso dia a dia –  Irene Blayer, partindo da análise das especificidades dos dialetos dos Açores, mostra como o que vemos como um fenómeno meramente vocálico e de pronúncia (como é hábito chamar-se) é afinal uma marca cultural distintiva, um traço identitário das ilhas, de cada ilha, um modo de ser, “ver, dizer e imaginar” (p. 14), não arbitrário, mas fruto de uma história e de uma tradição cultural de séculos.

Da ilha como fechamento e abertura fala-nos Vera Cymbron, na única crónica deste número. A crónica é, por excelência, um género escorregadio, ambíguo, entre a reflexão crítica e o texto literário, como acontece aqui: o testemunho de uma experiência pessoal de vivência da ilha assume quase um estatuto ficcional, poético.

Finalmente, a entrevista a Iva Matos, diretora da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada (BPARPD), é apresentada de modo original, tirando partido da natureza digital da revista. Em vez de ser transcrita, acede-se à entrevista através de um vídeo, o que dá maior vivacidade à publicação e maior diversidade aos seus conteúdos. Nela se fala sobre a leitura e o papel da BPARPD na formação de leitores, bem como no apoio aos autores e na divulgação cultural.

Não posso deixar de referir ainda dois outros aspetos: a editora da revista e o apelo final a contributos. Ogygia é lançada pela editora Moonwater, já com trabalhos publicados, dirigida por Avelina da Silveira, mais uma prova da capacidade criativa e de resistência desta autora.

No final da revista, o apelo aos contributos revela os princípios (democráticos, digo eu) que a norteiam: a abertura à expressão de cada uma, a vontade de fazer da aventura das palavras uma festa de todos, o que, nestes tempos de grande individualismo em que vivemos – e até de egoísmo –, é uma lição de vida a reter e a acarinhar.

Em conclusão, Ogygia é o acontecimento editorial da rentrée literária, que marca o panorama editorial regional e nacional por ser uma revista de elevada qualidade artística e literária, inteiramente feita por mulheres, dando-lhes voz e mostrando a pujança, a originalidade e a diversidade da produção feminina contemporânea. É, afinal, um espaço de encontro, onde a insularidade se torna universalidade.

Neste primeiro número de Ogygia, dedicado ao tema da ilha – numa escolha muitíssimo feliz – a insularidade surge numa panóplia de sentidos – literais e simbólicos – que ora remetem para a ilha concebida como um paraíso, ora isolada, desafiando a territorialidade e constituindo-se enquanto metáfora do mundo contemporâneo, conjugando na sua essência a relação dialética entre a abertura e o isolamento, o ensimesmamento do sujeito (nas suas particularidades e idiossincrasias) e a globalização. Não seremos todos ilhas em busca do nosso arquipélago?

Para terminar, faço votos de que esta publicação, dedicada à partilha da cultura, da literatura, das artes visuais, do pensamento crítico, de modo livre, descomplexado, generoso, e feita de modo dedicado e entusiástico por mulheres fortes e talentosas, tenha vida longa.

E fico já ansiosamente à espera do segundo número.

Muitos Parabéns a todas!

 

Ogygia: Uma Morada Atlântica da Literatura

por Diniz Borges, Fresno University


Criar uma revista literária é como erguer uma ilha nova no coração do oceano: feita de lava e sonho, mas também de uma geografia da memória. Foi isso que Avelina da Silveira e Paula de Sousa Lima ousaram fazer ao fundarem Ogygia, título que evoca a ilha de Calipso, espaço mítico onde Ulisses esteve retido, mas que aqui se transforma em espaço de libertação e criação. Desde o início, estas duas escritoras açorianas, vozes já firmes na literatura contemporânea, recusaram qualquer clausura: a revista não prende, abre; não se fecha, expande; não é enclave, mas ponte. É um gesto audaz, que responde ao apelo tantas vezes repetido pelo poeta Emanuel Félix: “é urgente democratizar a cultura”.

No editorial, Avelina da Silveira parte da imagem de Calipso, mas a resignificação é imediata. A ilha não é prisão, mas tear de liberdade: “não se trata de guardar ninguém, mas de acolher todas”. Este gesto funda o espírito da revista: um espaço literário plural, feminino no sentido mais criador e inclusivo, aberto à multiplicidade de vozes lusófonas. O editorial assume-se como manifesto: uma casa feita de palavras para resistir ao esquecimento e à indiferença.

Não se pode compreender a relevância de Ogygia sem reconhecer a longa e, muitas vezes, árdua trajetória das mulheres na literatura. Desde as vozes norte-americanas como Emily Dickinson, Toni Morrison e Alice Walker, que deram corpo às experiências de marginalidade e resistência, às vozes europeias de Virginia Woolf, Marguerite Duras ou Ingeborg Bachmann, que desconstruíram cânones e abriram novos espaços de escrita, a presença feminina tem sido farol. Em África, autoras como Ama Ata Aidoo, Paulina Chiziane ou Chimamanda Ngozi Adichie ergueram narrativas de identidade, memória e libertação. Na Ásia, vozes como Ding Ling, Kamala Das ou Arundhati Roy revelaram universos de resistência cultural e de consciência política. Também não podemos esquecer as vozes indígenas das Américas, como Joy Harjo, Leslie Marmon Silko ou Eliane Potiguara, que transformaram a oralidade ancestral em palavra literária. 

No mundo lusófono, a primeira metade do século XX trouxe-nos precursoras que desafiaram silêncios e preconceitos: Florbela Espanca, com
o seu lirismo audaz; Natália Correia, que inscreveu liberdade e erotismo como gestos políticos; Cecília Meireles, cuja poesia foi pátria e travessia; Alda Lara, que cantou Angola com esperança e dor. Essas mulheres abriram portas, fundaram caminhos que, hoje, se prolongam em projetos como este.

É dessa constelação que Ogygia herda o seu sentido: cada texto publicado na revista não é apenas voz isolada, mas eco de muitas vozes que, ao longo do tempo, foram rasgando horizontes. A literatura, enriquecida pelas mulheres, não é apenas mais plural; é mais profunda, mais humana, mais urgente. Porque cada palavra escrita por uma mulher traz consigo não apenas a sua vida, mas a memória de todas aquelas que antes ousaram escrever contra o silêncio. E se a literatura é sempre um oceano, as vozes femininas são as suas marés: constantes, renovadoras, indispensáveis.

Também é impossível pensar Ogygia fora da rica tradição literária dos Açores. Desde o século XIX os jornais e as revistas da região abriram
espaço a crónicas, poemas, críticas e ensaios, construindo uma cultura impressa que, muitas vezes, ia muito além do efémero. Os inúmeros
suplementos literários que animaram a vida cultural açoriana no século XX — hoje, infelizmente, todos desaparecidos — foram viveiros de escritores, críticos e leitores. Neles se formou um diálogo essencial entre as ilhas e o mundo. Esses espaços eram dominados maioritariamente por vozes masculinas, refletindo os constrangimentos de uma época. Surge agora Ogygia nessa tradição, mas também contra ela: inscreve-se no continuum da memória literária açoriana e, simultaneamente, dá-nos outras vozes e outras perspetivas, afirmando o feminino como centro criador e como lugar de revelação. É uma continuidade e uma rutura, um gesto de fidelidade e de reinvenção.

O ensaio de Irene Maria F. Blayer, Fonopoética da Ilha, é uma entrada de rigor e poesia no número inaugural. Nele, o sotaque açoriano é
elevado à dignidade de emblema cultural. “A nossa vogal aberta é também uma janela”, escreve Blayer, lembrando que a oralidade é, em si, um
arquivo da memória coletiva. É um texto de matriz académica, mas atravessado de lirismo, onde cada nota fonética se torna metáfora de pertença. Evocando Nemésio e a ideia de “açorianidade”, o ensaio demonstra como a voz humana pode carregar dentro de si uma ilha inteira.

A secção de poesia é um verdadeiro arquipélago literário, em que cada ilha é um poema distinto, mas todas se tocam no horizonte do
feminino e do insular. Dora Gago, em Ilhas Sagradas, desenha “ilhas suspensas na luz/ entre o nevoeiro e o vento”, versos que evocam tanto a
fragilidade como a eternidade das terras atlânticas. A sua poesia olha o arquipélago como santuário e destino, em equilíbrio entre o visível e o
etéreo. Maria do Rosário Pedreira, em Ventre, traz a dimensão da intimidade e da maternidade. O corpo torna-se espaço de comunhão: “dois filhos dentro de mim/ cada um com o seu silêncio/ e ambos com a minha voz”. É um poema que fala da pluralidade como destino, da vida como partilha. Avelina da Silveira, com Insularmente, escreve um canto de resistência. “Não são grilhões estas pedras,/ são asas endurecidas na lava”. A insularidade aqui não é prisão, mas promessa de libertação. Ângela de Almeida, em Mediterrâneo, evoca o mar como espaço de exílio e dor: “um mar de sangue nos olhos/ um êxodo de barcos perdidos”. A sua poesia não mascara o trágico, antes o torna visível e urgente, como ferida aberta no tempo.

A prosa devolve-nos a experiência concreta e a intensidade do afeto. Na crónica de Vera Cymbron, a ironia é a lente através da qual se observa o quotidiano açoriano. A onda que encanta é a mesma que destrói; o mar que dá é o mar que tira. A autora recusa a visão idílica e restitui a complexidade da experiência insular, mostrando que a beleza e a tragédia convivem no mesmo espaço. No conto Nas Margens da Ilha, Paula de Sousa Lima mergulha na relação entre amor e mar. “O corpo dele regressava sempre como a maré”, escreve, num texto em que a insularidade é também metáfora do desejo e da ausência. O conto confirma a autora como uma das prosadoras açorianas mais intensas da sua geração, unindo lirismo e narrativa.

Outro mérito de Ogygia é a sua abertura ao diálogo intercultural. Avelina da Silveira traduz excertos de Pouca Terra de Leonor Sampaio da

Silva. A tradução, sensível e precisa, é também gesto de partilha, de fazer chegar mais longe uma escrita que merece eco. Já Paula de Sousa Lima dedica uma crítica apaixonada ao romance Passagem Noturna, também de Leonor Sampaio da Silva. Sublinha o “labirinto narrativo que nos conduz por corredores de sombra e claridade”, reconhecendo na obra a marca de uma escrita singular, capaz de aliar humor e densidade poética. A crítica não é mero comentário: é leitura criadora, gesto de fraternidade literária.

Um dos momentos altos da revista é a presença das obras da pintora Nina Medeiros. As suas telas, aqui reproduzidas, não funcionam como mera ilustração, mas como extensão da palavra. Com cores densas, onde o azul profundo do Atlântico dialoga com os vermelhos da lava e os verdes da esperança, a pintura de Medeiros inscreve-se como linguagem paralela. Há nas suas imagens a mesma vibração telúrica que encontramos na poesia da revista: uma tentativa de dar forma visível ao invisível, corpo ao indizível.

O número fecha com uma entrevista e conversa em vídeo com Iva Matos, disponível no YouTube, sobre o papel das bibliotecas na promoção
da literatura de língua portuguesa. É um momento crucial: lembra-nos que nenhuma revista vive sozinha, que a circulação da palavra precisa de mediações, de espaços coletivos, de lugares onde os livros respiram. Matos sublinha a importância das bibliotecas como casas de memória e como lugares de encontro intergeracional. Num tempo de plataformas digitais e consumos rápidos, esta chamada de atenção é fundamental: a literatura só vive se tiver leitores, e os leitores precisam de acesso, espaços e estímulos.

Ogygia nasce digital e, nesse gesto, afirma-se como projeto democrático. Ao recusar o peso da edição convencional, abre-se ao mundo,
ultrapassando fronteiras físicas e tornando-se acessível a leitores nos Açores, em Portugal continental, no Brasil, nos Estados Unidos, em
qualquer parte onde alguém queira escutar a língua portuguesa e a escrita de vozes lusófonas em tradução. É um espaço que democratiza a cultura, não no sentido de banalizar, mas de tornar acessível aquilo que tem valor: a literatura.

A audácia de Avelina da Silveira e Paula de Sousa Lima está, portanto, em terem criado uma revista que é simultaneamente arquivo e
sementeira, memória e utopia. Cada texto — da poesia ao ensaio, da crónica à crítica, da tradução à entrevista (esta inovadora em vídeo) — é uma pedra nesta ilha recém-criada. Cada pintura é uma janela. Cada palavra é uma onda que chega a outras margens. Se toda a ilha é promessa de horizonte, Ogygia é mais do que ilha: é já arquipélago. Um arquipélago de vozes femininas, de vozes açorianas e lusófonas, de vozes que não se calam.

Uma revista que, em vez de aprisionar como Calipso, liberta. E, ao libertar, funda um novo espaço literário, onde o futuro da nossa língua se
pode reinventar. É esta a grandeza de Ogygia: provar que a literatura é sempre capaz de renascer, como ilha de lava a irromper do mar — e que, quando as mulheres erguem as suas vozes, o oceano inteiro se torna mais vasto, mais profundo, mais humano.