Ogygia: Uma Morada Atlântica da Literatura

por Diniz Borges


Criar uma revista literária é como erguer uma ilha nova no coração do oceano: feita de lava e sonho, mas também de uma geografia da memória. Foi isso que Avelina da Silveira e Paula de Sousa Lima ousaram fazer ao fundarem Ogygia, título que evoca a ilha de Calipso, espaço mítico onde Ulisses esteve retido, mas que aqui se transforma em espaço de libertação e criação. Desde o início, estas duas escritoras açorianas, vozes já firmes na literatura contemporânea, recusaram qualquer clausura: a revista não prende, abre; não se fecha, expande; não é enclave, mas ponte. É um gesto audaz, que responde ao apelo tantas vezes repetido pelo poeta Emanuel Félix: “é urgente democratizar a cultura”.

No editorial, Avelina da Silveira parte da imagem de Calipso, mas a resignificação é imediata. A ilha não é prisão, mas tear de liberdade: “não se trata de guardar ninguém, mas de acolher todas”. Este gesto funda o espírito da revista: um espaço literário plural, feminino no sentido mais criador e inclusivo, aberto à multiplicidade de vozes lusófonas. O editorial assume-se como manifesto: uma casa feita de palavras para resistir ao esquecimento e à indiferença.

Não se pode compreender a relevância de Ogygia sem reconhecer a longa e, muitas vezes, árdua trajetória das mulheres na literatura. Desde as vozes norte-americanas como Emily Dickinson, Toni Morrison e Alice Walker, que deram corpo às experiências de marginalidade e resistência, às vozes europeias de Virginia Woolf, Marguerite Duras ou Ingeborg Bachmann, que desconstruíram cânones e abriram novos espaços de escrita, a presença feminina tem sido farol. Em África, autoras como Ama Ata Aidoo, Paulina Chiziane ou Chimamanda Ngozi Adichie ergueram narrativas de identidade, memória e libertação. Na Ásia, vozes como Ding Ling, Kamala Das ou Arundhati Roy revelaram universos de resistência cultural e de consciência política. Também não podemos esquecer as vozes indígenas das Américas, como Joy Harjo, Leslie Marmon Silko ou Eliane Potiguara, que transformaram a oralidade ancestral em palavra literária. 

No mundo lusófono, a primeira metade do século XX trouxe-nos precursoras que desafiaram silêncios e preconceitos: Florbela Espanca, com
o seu lirismo audaz; Natália Correia, que inscreveu liberdade e erotismo como gestos políticos; Cecília Meireles, cuja poesia foi pátria e travessia; Alda Lara, que cantou Angola com esperança e dor. Essas mulheres abriram portas, fundaram caminhos que, hoje, se prolongam em projetos como este.

É dessa constelação que Ogygia herda o seu sentido: cada texto publicado na revista não é apenas voz isolada, mas eco de muitas vozes que, ao longo do tempo, foram rasgando horizontes. A literatura, enriquecida pelas mulheres, não é apenas mais plural; é mais profunda, mais humana, mais urgente. Porque cada palavra escrita por uma mulher traz consigo não apenas a sua vida, mas a memória de todas aquelas que antes ousaram escrever contra o silêncio. E se a literatura é sempre um oceano, as vozes femininas são as suas marés: constantes, renovadoras, indispensáveis.

Também é impossível pensar Ogygia fora da rica tradição literária dos Açores. Desde o século XIX os jornais e as revistas da região abriram
espaço a crónicas, poemas, críticas e ensaios, construindo uma cultura impressa que, muitas vezes, ia muito além do efémero. Os inúmeros
suplementos literários que animaram a vida cultural açoriana no século XX — hoje, infelizmente, todos desaparecidos — foram viveiros de escritores, críticos e leitores. Neles se formou um diálogo essencial entre as ilhas e o mundo. Esses espaços eram dominados maioritariamente por vozes masculinas, refletindo os constrangimentos de uma época. Surge agora Ogygia nessa tradição, mas também contra ela: inscreve-se no continuum da memória literária açoriana e, simultaneamente, dá-nos outras vozes e outras perspetivas, afirmando o feminino como centro criador e como lugar de revelação. É uma continuidade e uma rutura, um gesto de fidelidade e de reinvenção.

O ensaio de Irene Maria F. Blayer, Fonopoética da Ilha, é uma entrada de rigor e poesia no número inaugural. Nele, o sotaque açoriano é
elevado à dignidade de emblema cultural. “A nossa vogal aberta é também uma janela”, escreve Blayer, lembrando que a oralidade é, em si, um
arquivo da memória coletiva. É um texto de matriz académica, mas atravessado de lirismo, onde cada nota fonética se torna metáfora de pertença. Evocando Nemésio e a ideia de “açorianidade”, o ensaio demonstra como a voz humana pode carregar dentro de si uma ilha inteira.

A secção de poesia é um verdadeiro arquipélago literário, em que cada ilha é um poema distinto, mas todas se tocam no horizonte do
feminino e do insular. Dora Gago, em Ilhas Sagradas, desenha “ilhas suspensas na luz/ entre o nevoeiro e o vento”, versos que evocam tanto a
fragilidade como a eternidade das terras atlânticas. A sua poesia olha o arquipélago como santuário e destino, em equilíbrio entre o visível e o
etéreo. Maria do Rosário Pedreira, em Ventre, traz a dimensão da intimidade e da maternidade. O corpo torna-se espaço de comunhão: “dois filhos dentro de mim/ cada um com o seu silêncio/ e ambos com a minha voz”. É um poema que fala da pluralidade como destino, da vida como partilha. Avelina da Silveira, com Insularmente, escreve um canto de resistência. “Não são grilhões estas pedras,/ são asas endurecidas na lava”. A insularidade aqui não é prisão, mas promessa de libertação. Ângela de Almeida, em Mediterrâneo, evoca o mar como espaço de exílio e dor: “um mar de sangue nos olhos/ um êxodo de barcos perdidos”. A sua poesia não mascara o trágico, antes o torna visível e urgente, como ferida aberta no tempo.

A prosa devolve-nos a experiência concreta e a intensidade do afeto. Na crónica de Vera Cymbron, a ironia é a lente através da qual se observa o quotidiano açoriano. A onda que encanta é a mesma que destrói; o mar que dá é o mar que tira. A autora recusa a visão idílica e restitui a complexidade da experiência insular, mostrando que a beleza e a tragédia convivem no mesmo espaço. No conto Nas Margens da Ilha, Paula de Sousa Lima mergulha na relação entre amor e mar. “O corpo dele regressava sempre como a maré”, escreve, num texto em que a insularidade é também metáfora do desejo e da ausência. O conto confirma a autora como uma das prosadoras açorianas mais intensas da sua geração, unindo lirismo e narrativa.

Outro mérito de Ogygia é a sua abertura ao diálogo intercultural. Avelina da Silveira traduz excertos de Pouca Terra de Leonor Sampaio da

Silva. A tradução, sensível e precisa, é também gesto de partilha, de fazer chegar mais longe uma escrita que merece eco. Já Paula de Sousa Lima dedica uma crítica apaixonada ao romance Passagem Noturna, também de Leonor Sampaio da Silva. Sublinha o “labirinto narrativo que nos conduz por corredores de sombra e claridade”, reconhecendo na obra a marca de uma escrita singular, capaz de aliar humor e densidade poética. A crítica não é mero comentário: é leitura criadora, gesto de fraternidade literária.

Um dos momentos altos da revista é a presença das obras da pintora Nina Medeiros. As suas telas, aqui reproduzidas, não funcionam como mera ilustração, mas como extensão da palavra. Com cores densas, onde o azul profundo do Atlântico dialoga com os vermelhos da lava e os verdes da esperança, a pintura de Medeiros inscreve-se como linguagem paralela. Há nas suas imagens a mesma vibração telúrica que encontramos na poesia da revista: uma tentativa de dar forma visível ao invisível, corpo ao indizível.

O número fecha com uma entrevista e conversa em vídeo com Iva Matos, disponível no YouTube, sobre o papel das bibliotecas na promoção
da literatura de língua portuguesa. É um momento crucial: lembra-nos que nenhuma revista vive sozinha, que a circulação da palavra precisa de mediações, de espaços coletivos, de lugares onde os livros respiram. Matos sublinha a importância das bibliotecas como casas de memória e como lugares de encontro intergeracional. Num tempo de plataformas digitais e consumos rápidos, esta chamada de atenção é fundamental: a literatura só vive se tiver leitores, e os leitores precisam de acesso, espaços e estímulos.

Ogygia nasce digital e, nesse gesto, afirma-se como projeto democrático. Ao recusar o peso da edição convencional, abre-se ao mundo,
ultrapassando fronteiras físicas e tornando-se acessível a leitores nos Açores, em Portugal continental, no Brasil, nos Estados Unidos, em
qualquer parte onde alguém queira escutar a língua portuguesa e a escrita de vozes lusófonas em tradução. É um espaço que democratiza a cultura, não no sentido de banalizar, mas de tornar acessível aquilo que tem valor: a literatura.

A audácia de Avelina da Silveira e Paula de Sousa Lima está, portanto, em terem criado uma revista que é simultaneamente arquivo e
sementeira, memória e utopia. Cada texto — da poesia ao ensaio, da crónica à crítica, da tradução à entrevista (esta inovadora em vídeo) — é uma pedra nesta ilha recém-criada. Cada pintura é uma janela. Cada palavra é uma onda que chega a outras margens. Se toda a ilha é promessa de horizonte, Ogygia é mais do que ilha: é já arquipélago. Um arquipélago de vozes femininas, de vozes açorianas e lusófonas, de vozes que não se calam.

Uma revista que, em vez de aprisionar como Calipso, liberta. E, ao libertar, funda um novo espaço literário, onde o futuro da nossa língua se
pode reinventar. É esta a grandeza de Ogygia: provar que a literatura é sempre capaz de renascer, como ilha de lava a irromper do mar — e que, quando as mulheres erguem as suas vozes, o oceano inteiro se torna mais vasto, mais profundo, mais humano.